quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Uma experiência, um novo olhar.

Para começar eu gostaria de esclarecer que não quero manter esse espaço como um banco de textos léxicos e acadêmicos, portanto, farei abordagens críticas para todos (as) lerem com o mesmo entusiasmo ou não, sem ficar para trás nenhuma dúvida sobre as expressões aqui colocadas.Nesse ano de 2007, precisamente no dia 07 de Julho, acontecera um acidente que iria mudar o rumo de meus pensamentos com relação a seres humanos. Um grande amigo, de longa data e benquisto por todos que o rodeavam acidentou-se, e nesse acidente sofreu algumas lesões que o marcariam por toda a vida, pois encontrara ali, caído no chão de algum lugar desconhecido e sem ninguém para ajudá-lo, forças para resistir à morte que acabara de visitá-lo, que sem sucesso, voltou para o lugar de onde saiu.Nessa vida, às vezes, as coisas acontecem como um conjunto de tramas, uma conspiração de fatores que no fim das contas, forma-se um todo, eu falo da minha má fase que vinha passando desde o meu fim de estágio, que me frustrou muito (não interessa agora entrar em detalhes), a crise depressiva que me deixou em estado de “parafuso”, praticamente sem ação nem reação para muitas coisas, tranquei a faculdade e junto com isso meus planos que me motivavam ao acordar todos os dias, ou seja, minha vida estava parada até então.Todos esses fatores citados acima contribuíram para que minha vida enriquecesse de uma forma fugaz. Como o acidente deste amigo fora gravíssimo, o tempo de recuperação estimado fora demasiado lento e longo, e a internação tornara-se inerente a esta recuperação, que exigia atenção e paciência para ambos, o acidentado e os (as) cuidador (as).Nesse caso, analisei a situação com as melhores das intenções, e me ofereci como cuidador, que precisaria após sua transferência da unidade de terapia intensiva (UTI) para o quarto de observação pós-cirurgico e por fim o quarto de recuperação final.Todo esse processo demorou, mais de 60 dias, e nesses sessenta dias eu vivi a mais complicada e extraordinária experiência até então. Todos os dias e/ou noites num hospital, cuidando de um amigo, que pouco tempo atrás era uma pessoa independente, e ali assustadoramente viera depender de meus cuidados para qualquer coisa.Diante dessa vicissitude, eu me sentia constrangido, pelo fato de não ter ainda me deparado com algo parecido, e ao mesmo tempo ele tímido por até o momento, não depender de mão que o auxiliassem para mudar de posição sobre a cama, ou para levar à boca uma colher de papa que ele chamava de “suco salgado”, e quase jorrava de sua boca por perder os reflexos com o Acidente Vascular Cerebral causado pelo percalço, ou envergonhado pelo fator hoje concebido pela sociedade como algo mais importante em suas relações, a estética, pois seu crânio sofrera um corte parcial no lado esquerdo, corte este causado pela cirurgia que fora submetido com urgência na entrada ao hospital, cirurgia que em suas palavras - “salvou minha vida”,Mas encontrei forças para suprir as faltas que ele sentia para com sua nova e dura vida, e ao mesmo tempo para eu refletir sobre a vida e valores até então não observados como eu pensava que deviam, e fui à batalha contra minha própria patologia, dia após dia sentado ao lado, ali num hospital público eu percebi o quanto nós somos vulneráveis, e ao mesmo tempo semelhantes biologicamente, pois a maneira em que via indivíduos de todas as idades e condições morais, não importava esses critérios, eram tratados da mesma forma pelos profissionais que lá os atendiam, nivelados por baixo, não importava se tinham filhos (as), netos (as), ou qualquer outro elemento que configurasse ele como um cidadão de bem, ele era um mero paciente. Num mesmo quarto havia um senhor evangélico com tumor encefálico, aparentemente saudável, outro homem de meia idade que sofria de lapsos de memória, e esse meu amigo, um AVC Pós-traumático, que não conseguia sequer levantar da cama para ir ao banheiro. Todos ali, reunidos por uma eventual e triste ocasião da vida. Nesse quarto eu percebi que a relação entre os pacientes era recíproca, talvez se identificassem por ambos estarem passando por momentos difíceis, não havia uma relação de poderes, uma hierarquia moral, eram todos pacientes querendo ajudar uns aos outros, parecia um sentimento fraterno, antes disso nunca haviam se visto antes, mesmo assim estas pessoas se respeitavam como se fossem velhos amigos.Neste momento começara uma transformação na minha concepção acerca dos seres humanos. A partir dessas minhas percepções eu entrava no hospital cada vez mais fortificado e determinado a lutar junto, não só ao meu amigo, mas àquelas pessoas que ali estavam, e se mostravam carentes de alguma forma. A minha idéia sempre girava em torno do psicológico, e lembrei-me de algo que poderia me ajudar e a eles também, a tal da transdisciplinaridade, mas não se tratava de usar um conceito para ensino ou pesquisa, era para fazer estas pessoas perceberem os seus valores como seres humanos, tinham sua importância como cidadãos, ainda que adoentados, seus valores e suas vidas de alguma forma continuaria lá fora daquela imensa camada de concreto, que parecia que os separava da vida real que levavam antes de estarem ali.O tempo ia se passando e cada vez mais eu ia me acostumando a ver acidentados, doentes e mortos passando por aquele imenso corredor, e aquele cheiro de éter, que estava impregnado nas paredes, eu já começara a me relacionar com zeladoras, enfermeiros (as), médicos (as), psicóloga, fonoaudióloga, fisioterapeuta, nutricionista e tantos outros que estavam naquele local, era uma verdadeira miscelânea, parentes de pacientes, amigos, etc...Os profissionais daquela ala do hospital já comentavam minha relação com meu amigo, e se surpreendiam quando eu respondia a pergunta “vocês são irmãos?” (aliás, foi a pergunta mais freqüente), como não éramos irmãos eles se surpreendiam, retrucando “isso que é amigo” e aquilo não me deixava orgulhoso de mim, pois eu percebia que era o mínimo que poderia fazer a um amigo diante daquela tragédia que se estendera em sua vida.Mas voltando à transdisciplinaridade, eu comecei à ajudar os companheiros de quarto, um outro quarto havia um senhor AVC também, seu lado direito estava paralisado, e eu o ajudava pois ele sempre estava só, não haviam visitas de entes, pelo menos freqüentes, então ele contava comigo na hora de comer e de levantá-lo para ir ao banheiro, nos tornamos no mínimo parceiros temporários, e nessa convivência eu procurava conversar com ele, e nessas conversas eu fazia perguntas remetendo à sua vida, para ele não desanimar, eu o elogiava como um bom pai que teria sido até então, e que as coisas poderiam melhorar para ele a partir do momento que se envolvesse e abrisse mão do orgulho para com seus filhos, eu percebi que ele não queria que sua família o visitasse, pois não queria que o vissem daquela forma, um homem que por muitos anos sustentou uma família, agora naquela cama de hospital dependente de outras pessoas. Pois bem, eu comecei a fazer algumas alusões a outros indivíduos, famosos, que já tinham passado por aquilo, pois seria uma forma de ele visualizar e corrigir sua postura quanto a isso. Falei de um ator que teve um AVC e ficou muitos anos inválido na cama, mas isso não tirou seus méritos, pois sua vida sempre fora uma vida de lutas, e era um ser humano como nós, e que a partir do momento em que adoeceu, ele percebeu que a vida é frágil e que não interessava se ele a partir dali não iria mais trabalhar em seu ramo, ou se as pessoas com um tempo iriam o esquecê-lo, uma vez que fora um artista famoso e requisitado, mas que aquilo serviu para ele se aproximar mais ainda de seus filhos que há muito não conversavam, não trocavam palavras de amor e respeito. A partir daquilo eu pensei que ele iria começar a ver as coisas de uma maneira diferente, eu não o vi fazendo muito, a não ser recebendo os dois filhos no dia em que meu amigo foi para sua casa, 60 dias após sua entrada naquele local.Com meu amigo as coisas eram diferentes, acredito que sua recuperação rápida, começara a partir da UTI, onde passou duas longas semanas, pois lembro até hoje o rosto impressionado da enfermeira que cuidava dele dizendo “Ele bateu o recorde de visitas na UTI” , penso eu que de uma forma inconsciente as pessoas entravam e deixavam suas melhores energias para que ele saísse dessa, enquanto ele desacordado, respirando por aparelhos, absorvia aquelas energias. Eu lembro, também, que quando eu entrava para vê-lo ele se mexia, como se estivesse conversando, hoje ele não lembra, mas fora sim uma conversa inconsciente entre nós.Quando passou para o quarto de observação, já estava bem melhor, pelas condições que se encontrava dias antes. Por ele não estar doente, e sim traumatizado pelo acidente, sempre esperava um pouco mais do que ele podia dar como resposta, então todas as coisas que fazia para ele, era pensando na sua recuperação mais acelerada, e fazia como se fosse para mim. A parte mais complicada ficava para o lado psicológico, pois alguns o tratavam como um animal doente, como se fosse um neném que acabara de nascer, isso atrapalhava todas as minhas investidas em relação às conversas que tínhamos, pois após um tratamento daqueles, voltava aquele sentimento de impotência, e meu trabalho ficava cada vez mais difícil com relação a isso.Mas minha teimosia foi maior que a dele para deixá-lo pronto para voltar à sua vida normal, enquanto ele ficava emburrado quieto, eu o atormentava para conversar e exercitar seus músculos, chegamos até a uma discussão, ele acabou reclamando de mim, pois eu estava querendo que ele fizesse coisas que não queria, por exemplo: eu chegava todos os dias às 7 da manhã no hospital, com a energia carregada depois de uma noite, agitando o quarto e convidando-o para tomar banho, caminhar e se exercitar, coisas básicas para sua recuperação. Isso o deixava manhoso, pois o que ele queria era ficar naquela cama como um doente, que não era. Ele tinha consciência que a recuperação dependia muito dele, e que eu estava lá para ajudá-lo a superar os obstáculos que o afrontavam diariamente, a partir de várias investidas minhas eu consegui então convencê-lo de que as coisas que eu pedia a ele eram para ele sair o quanto antes do hospital, ele não queria mais ficar lá, não conseguia mais dormir direito, muito barulho durante 24 h, entra e sai de enfermeiros no quarto dava a impressão de que aquele lugar era um local de trabalho, e não de recuperação.Ele começou a fazer as caminhadas matinais, eu chegava de manhã cedo e ligava o som no banheiro, ligava o chuveiro, e ele já estava caminhando sozinho e sem apoio até o chuveiro, e eu ia vendo que a recuperação e o retorno para sua casa estavam cada vez mais próximos. As nossas conversas giravam em torno de acontecimentos globais e locais, política, até acabei me desabafando para ele, falando sobre meus problemas e tudo mais.As coisas mudaram de uma forma esperada, muito esperada, ele começou a escovar os dentes e comer sozinho, ia ao banheiro quando dava vontade, sua re-independência estava ali, postas para quem enxergasse e quem lutara para que isso acontecesse.Eu me recordava das minhas formas de tratamento com indivíduos antes disso nessas condições, eram diferentes, pois eu não tinha coragem de enfrentar, precisei que acontecesse com alguém que eu amasse para, só então tomar coragem. Hoje quando passo por qualquer impecílio da vida, ou encontro uma pessoa com problemas, imediatamente lembro-me dessa experiência para encarar da maneira mais coerente possível a situação e dar a volta sobre estes.A transdisciplinaridade é ir além de suas formas de pensar, é pensar também que as pessoas são carregadas de histórias como você, e que o corpo não é nada perto de suas memórias, observar as pessoas e analisar a partir de seus conhecimentos não é suficiente, temos que juntar isso às experiências das pessoas que ali estão, e juntando isso em uma totalidade encontraremos formas mais precisas de tratamento à qualquer que sejam as circustâncias. Antes de julgarmos sermos os melhores naquilo que somos e fazemos, temos que pensar que existem outras áreas que podem além de auxiliar na solução, ou tentativa de solucionar o problema, podemos conhecer essas áreas, nos transpor para outras experiências, só assim conseguiremos enxergar de vários ângulos e alcançar as expectativas.

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